Biografia de Fred Rogers tem trunfos, mas peca ao se afastar da realidade

“Um Lindo Dia na Vizinhança", que estreia nesta quinta, traz Tom Hanks no papel do popular apresentador de TV e pastor presbiteriano

iG Minas Gerais | Patrícia Cassese |

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Ao jogar o nome do filme “Um Lindo Dia na Vizinhança” no espaço de buscas do Google, o internauta verá de imediato aparecer, à direita da tela do computador, uma estatística que impacta: 90% gostaram da produção. Não é pouco, e o longa de Marielle Heller, com Tom Hanks e Matthew Rhys à frente do elenco, tem grandes probabilidades de repetir o feito aqui, no Brasil, onde estreia nesta quinta-feira.

Sim, a princípio, o fato de retratar uma figura icônica do universo do entretenimento norte-americano – o pastor presbiteriano Fred Rogers (1928-2003) foi um popular apresentador televisivo, atuando com o suporte de bonecos e canções educativas – poderia soar como um empecilho para gerar, na plateia, uma identificação imediata. Mas o trunfo é que o filme trabalha questões que, no fundo, dizem respeito a todos, independentemente de sexo, idade, classe social ou credo. No entanto, que fique claro, essa qualidade e o engajamento de público apontados aqui não eximem o longa de ressalvas.

Quando, no início do filme, Fred Rogers abre uma janelinha cenográfica na qual o rosto do jornalista Lloyd Vogel (Matthew Rhys) aparece consternado, temos, na sequência, uma explicação rápida e didática de como as coisas funcionam numa redação. No caso, a da revista “Esquire”, onde ele trabalha. Estamos nos anos 90, e o repórter é flagrado numa situação um pouco inusual: o nível de acidez que permeia suas matérias atingiu um patamar tão alto que os candidatos a serem entrevistados pelo moço preferem declinar do convite de aparecer na célebre revista a correr o risco de serem expostos a chuvas e trovoadas. 

Mas, sim, há uma celebridade que topa se oferecer ao sacrifício. Bingo, é justamente ele, Fred Rogers.

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Quando a editora de Vogel passa a pauta, a indicação é clara: o texto final deve ter poucos caracteres, ou seja, não há ali nenhuma evidência de que a matéria terá destaque na edição na qual será inserida. E o estupor que o jornalista apresenta diante da incumbência é legítimo: afinal, ele é um repórter investigativo, e, em tese, não haveria sentido algum em ser a ele delegada a tarefa de traçar o perfil de um cara que não só lida com crianças, como, no curso de sua carreira, angariou quase que uma aura de santidade. 

Mas eis que Lloyd também está, naquele momento, lidando com uma criança – no caso, seu primeiro filho, fruto do casamento com Andrea Vogel (a belíssima Susan Kelechi Watson, de “This Is Us”). E, portanto, precisa do emprego. Um parêntese: há que se ressaltar que outra relação pai-filho está em cena, a de Junod com o pai, Jerry Vogel (Chris Cooper), sendo essa trespassada por rancores e mágoas. 

De volta à pauta que se torna o epicentro da trama, o contato para acertar os detalhes da entrevista é, para a surpresa do repórter, feito pelo próprio Rogers. Para quem não conhece bem os meandros das redações, algo muito, muito raro. E é no estúdio que tem início a série de encontros que vai alterar para sempre as percepções do jornalista, que passa paulatinamente a se despir da armadura com a qual até então vinha enfrentando a vida.

Nas estratégias sutis de Rogers para cooptar a atenção não só dos baixinhos – os mais velhos também são seus fãs, como se vê numa cena do metrô (já que ele faz questão de descartar estrelismos) –, o público que anda por aí, cansado de tanto ódio e cizanias (e não estamos falando apenas do Brasil) e que ainda acredita num antídoto para tempos tão difíceis, provavelmente vai se aferroar. 

O que Rogers propõe é que o jornalista escarafunche dentro de si os acontecimentos que o tornaram assim, tão avesso a afetos, de modo a poder reavaliar sua relação com o outro e, num contexto mais amplo, com quem tanto lhe fez mal – no caso, o pai. Fácil? Bem, está lá a comparação que o apresentador faz com o dedilhar das teclas do piano para salientar que não.

Ao fim, mesmo diante de boas soluções de edição e narrativa, o que fica, para alguns, é a constatação de que talvez os tempos atuais estejam mais para “Coringa”, “Bacurau” e “Os Miseráveis” do que para os bonecos e as canções didáticas de Rogers. Mas quem vai bater o martelo, claro, é o espectador.