Associação entre depilação e higiene não é confirmada pela ciência
Para especialistas, a disseminada prática de remover pelos da genitália feminina é um comportamento compulsório

Na primeira vez em que enfrentou uma sessão de depilação, Aparecida de Oliveira tinha 19 anos. Até então, diferentemente da maioria das amigas que já estavam habituadas a essa prática desde os 15 anos, ela apenas se valia de aparelhos de barbear para remover pelos da genitália e das axilas. “Eu estava começando um namoro, e minha mãe me pressionou a recorrer à cera quente como método, porque dizia que os homens preferem assim”, lembra a publicitária, que hoje ri do fato de ter se deixado convencer por esses argumentos. Ela lembra que, nos dois anos em que utilizou, sempre o fez a contragosto, tanto que, em todas as vezes, coube à mãe marcar as visitas à esteticista.
“Para falar a verdade, eu achava um martírio passar por aquilo. Além da dor, ocasionalmente ainda sentia ardência e vermelhidão na região íntima, como se a pele estivesse machucada”, recorda. Por isso, há três anos ela não realiza mais essa intervenção no corpo e apenas apara os pelos púbicos de tempos em tempos.
A história de Aparecida é emblemática de como a depilação, no caso das mulheres, é entendida como um comportamento compulsório de adequação do corpo a um padrão socialmente aceito, como examina Maria Luiza Sangiorgi, mestra em biologia da reprodução pela Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. Ela cita que, como se tornou banal e rotineira, é difícil identificar quando a retirada dos pelos se tornou uma regra, sendo ainda mais complicado indicar as razões originais que estão por trás da perpetuação dessa prática.
“Dentre essas hipóteses está a da influência que a grande difusão da pornografia na internet exerce sobre as preferências dos parceiros sexuais. Outra possibilidade é a de que, com a genitália depilada, a sensibilidade sexual seja maior. Ainda se pressupõe que possam existir motivações inconscientes para simular uma aparência infantil, já que a presença de pelos genitais é um sinal de maturação sexual, ou o desejo de se distanciar da natureza animal que os pelos pubianos denunciam”, escreve a estudiosa em sua dissertação de mestrado.
Por outro lado, para além das motivações originais que podem explicar esse padrão comportamental, certo mesmo é que essa é a preferência da esmagadora maioria dos brasileiros e das brasileiras: ouvindo quase 53 mil mulheres e mais de 17 mil homens, Maria Luiza identificou em suas investigações que 64,3% delas e 62,2% deles dizem preferir a genitália feminina completamente depilada, enquanto que, entre elas, 31,9% preferiram parcialmente depilada e 2,6% preferiram não se depilar. Entre os homens, 31,4% preferiram a área genital feminina parcialmente depilada, e 4,3% preferiram ao natural.
No estudo, a pesquisadora da sexualidade humana também quis saber as principais razões para a escolha do tipo preferido de depilação dos pelos pubianos. Entre as mulheres, a maioria (24,8%) respondeu que a motivação era a higiene. Em segundo lugar (24,4%), aparece uma combinação de motivos: beleza, higiene e relação sexual. Já entre os homens, o quesito mais citado para justificar a predileção foi beleza (21,7%) e uma combinação de beleza, higiene e relação sexual (26,7%).
Apelo. Mas será mesmo que depilação é sinônimo de melhor asseio? Antes de responder, Maria Luiza observa que não há um consenso científico sobre a função fisiológica dos pelos pubianos, que são frequentemente removidos parcial ou totalmente de acordo com os costumes de cada população. Em sua dissertação de mestrado, ela reconhece que “muitos (profissionais da saúde) recomendam a remoção com base na crença de que os pelos podem acumular resíduos, atrapalhando a limpeza da região genital, o que facilitaria a aquisição de infecções. No entanto, ainda não há comprovação de que o hábito de se depilar tenha relação com a higiene genital”, escreve.
Depilação pode trazer riscos e associação à higiene não é confirmada
Aparentemente, a crença de que a depilação trará melhores condições de asseio, garantirá melhor aparência e trará benefícios para as relações sexuais faz valer o desconforto que a prática gera à maioria das brasileiras adeptas. No estudo “A preferência de homens e mulheres em relação à depilação genital feminina e implicações clínicas da depilação da genitália”, Maria Luiza registra que “65% das mulheres relataram sentir prurido (coceira), vermelhidão, pelo encravado e/ou outro sintoma clínico após a depilação”. Ela acrescenta que a maior parte delas relata se depilar em casa (55,8%), sendo que 44,4% utilizam cera quente, e 40,1%, lâmina de barbear.
Preceptora da residência de dermatologia da Santa Casa, Michelle Diniz ressalta que, mais que simples desconfortos, a remoção de pelos pode trazer riscos se feita de maneira descuidada. “Primeiro, precisamos lembrar que tanto o hábito de se depilar como a forma como é feita essa depilação são mais uma questão cultural do que propriamente de higiene”, destaca, acrescentando que existem algumas doenças – como a hidradenite – em que é comum haver recomendação médica para a retirada definitiva de pelos, que, nestes casos, geram inflação.
“O próprio processo de depilar, seja com lâmina ou com cera, pode gerar pequenos ferimentos na pele, que são potenciais porta de entrada para infecções”, argumenta Michelle. Os riscos são maiores no caso do uso de cera, principalmente a quente. “Pode haver, por exemplo, queimaduras na pele, que podem evoluir para manchas quando a ferida é cicatrizada. E, depois da depilação – seja com cera ou com pinça – pode haver inflamação do pelo quando ele retorna ao crescimento (foliculite)”, expõe.
Cuidados. A membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) adverte ser importante que as mulheres que realizam o procedimento em clínicas de estética estejam atentas ao material utilizado. “Não se deve, em nenhuma hipótese, reaproveitar a cera, algo que aumenta o risco de infecções”, explica. No caso de depilação a laser, “é necessário buscar por profissionais capacitados, porque pode haver o risco de queimaduras, formação de manchas e cicatrizes”, complementa, dizendo que os pacientes que vão passar pelo procedimento não devem estar com a pele bronzeada.
“Se o objetivo não é remoção permanente (quando a depilação a laser é indicada), a pessoa pode recorrer às lâminas de barbear, que são seguras, desde que usadas das maneira correta”, sublinha a especialista, lembrando que os movimentos devem seguir o mesmo sentido dos pelo, o que vai evitar lacerações e reduzir os riscos de foliculite.
Quando a depilação é uma decisão consciente
Voltando à história que abre essa reportagem, só mais recentemente, quando passou a trabalhar em regime de home office por conta da pandemia de Covid-19, Aparecida de Oliveira, que tem hoje 25 anos, resolveu deixar crescer os pelos das axilas. E não é que gostou? “Eu comecei a me questionar como ficaria. E, no fim das contas, achei bonito. Sinto que fiz as pazes comigo, que não preciso mais passar por tantos processos para me sentir bem”, orgulha-se. Contudo, a moça reconhece que, quando eventos sociais voltarem à rotina, com a população vacinada e a emergência de saúde controlada, certamente voltará a se depilar com mais frequência. “Não consigo me imaginar entrando em uma piscina. Já pensou? Todo mundo te olhando como se você fosse um extraterrestre? Não me sentiria à vontade para isso”, reconhece.
Para a psicóloga e sexóloga Adriana Peterson Mariano, a experiência de Aparecida é exemplo de como a depilação nem sempre é uma escolha consciente, de forma que seria muito superficial resumir todo o debate apenas sob o argumento de que se depila quem quer. “Há normas sociais que colocam a depilação como uma atividade compulsória, tanto que muitas mulheres começaram a passar por essa experiência ainda na adolescência”, observa.
Doutora em ginecologia pela USP, ela defende que a discussão sobre a remoção de pelos – que se popularizou principalmente quando celebridades, como a artista pop norte-americana Madonna e a atriz brasileira Bruna Linzmeyer, assumiram publicamente seus pelos – é importante à medida que serve como meio de alcançar mais autonomia em relação a essa decisão.
“É quando essa mulher vai se olhar e decidir se, de fato, ela quer ou não se depilar ou se só está fazendo uma concessão ao desejo do outro. Não significa que ela vá ignorar o que a sua parceria deseja ou como as pessoas ao seu redor vão reagir. Mas é fundamental que ela tenha a possibilidade de pesar esses fatores e fazer uma escolha consciente. E, neste caso, sua opção pode, sim, contrariar a maioria”, argumenta Adriana.
Cultura e história. Referindo-se à pesquisa conduzida por Maria Luiza Sangiorgi, de quem foi orientadora, ela lembra que o hábito de se depilar tem claras implicações culturais, relacionando-se a tempos e espaços muito específicos. Prova disso é que, na pesquisa, observou-se que, “ao se relacionar, a remoção completa dos pelos púbicos foi preferida por mulheres de 18 a 45 anos; entretanto, a magnitude dessa preferência foi reduzida juntamente com o aumento da idade”.
“O fenômeno oposto foi observado em relação à preferência pela depilação parcial, uma vez que foi observado que a maioria das mulheres com mais de 45 anos preferiu a depilação parcial (48,96%) e, além disso, a porcentagem de mulheres que preferiram a remoção completa dos pelos foi a mais baixa (44,09%) nessa faixa etária”, lê-se em “A preferência de homens e mulheres em relação à depilação genital feminina e implicações clínicas da depilação da genitália”.
Retrocedendo ainda mais na história, é possível encontrar evidências da valorização da região genital totalmente depilada. “Ao longo dos anos e em diferentes culturas pode-se observar variadas atitudes em relação à retirada dos pelos da genitália. Antigos gregos e egípcios valorizavam a remoção dos pelos, os primeiros reconheciam a pele lisa como significado de civilização e os últimos já removiam seus pelos indesejados com lâminas de barbear, açúcar e cera de abelha. Raramente se observou pelos pubianos retratados nas representações artísticas do corpo humano nu até o final do século XIX”, aponta Maria Luiza.