É culpa da natureza, estúpido! – O ladrão de galinhas
O historiador Eric Hobsbawm morreu em 2012, com 95 anos. Polêmico e contestador, suas obras sobre cultura são definitivas. Engraçado e irônico, não tinha papas na língua, criticando seus anfitriões em seminários mesmo sendo o convidado principal. Referindo-se à música erudita, dizia não existirem mais de 200 obras sobreviventes, tocadas exaustivamente para um público de no máximo 20 mil pessoas em Nova York, formado de senhoras e senhores sérios e compenetrados. A mesma situação valeria para o resto do mundo. Das artes plásticas pouco mais restou. A música erudita durou 400 anos (morrendo como atividade criativa na primeira metade do século XX), enquanto pintura e escultura surgiram antes de Cristo e agonizam desde as últimas décadas do século passado. Haverá 200 pintores e escultores que mereçam ser vistos e revistos? Duvido. A boa literatura de ficção está morta ou, na melhor das hipóteses, respirando por aparelhos. Quantos autores resistiram ao tempo? 200, se tanto, pensando como Hobsbawn. Um desses sobreviventes é Balzac. CRIME CONTINUADO Saiu esta semana neste jornal uma matéria sobre certo cidadão chamado Afanásio, que tentou furtar um galo e uma galinha, avaliados em R$40,00. O caso chegou ao STF depois de percorrer todas as instâncias e continua rendendo. “Ao analisar o caso [reproduzo d’O TEMPO], o ministro Luiz Fux decidiu aguardar o julgamento do mérito do pedido para decidir a questão definitivamente. ‘A causa de pedir a medida liminar se confunde com o mérito da impetração, porquanto ambos referem-se à aplicabilidade, ou não, do princípio da insignificância no caso sub examine. Destarte, é recomendável que seja, desde logo, colhida a manifestação do Ministério Público Federal’, decidiu Fux”. O ministro é cego ou não quer ver? Que a linguagem é de um pedantismo irritante está claro. Mas todo ministro escreve assim, mesmo porque só devem ter lido códigos, esquecidos de que o mundo gira e que a grande literatura ensina, além de destrinchar a vida, a escrever bem. Ao ler a matéria, lembrei caso antigo, estudado na faculdade, em que outro Afanásio furtou, durante 40 semanas, 40 galinhas no galinheiro do vizinho. A questão era a seguinte: quantos crimes foram cometidos? Se apenas um, continuado, a pena seria de No máximo quatro anos. Se crimes isolados, poderia alcançar quatro x 40 = 160 anos. Assim se constrói a lei. O MUNDO GIRA Não é por acaso que Marx idolatrava Balzac. Em seus livros, escritos na primeira metade do século XIX, o romancista, fascinado pela sujeira que descobrira debaixo do tapete social, exibe toda a mesquinharia e toda a podridão da sociedade francesa. Foi deles que Marx recortou boa parte de suas ideias sobre o capitalismo. Por exemplo: “Os ricos jamais foram postos na prisão por dívidas. Não me parece que o senhor seja forte em história. Porque há duas histórias [dizia um erudito jesuíta ao jovem Lucien Chardon em ‘Ilusões Perdidas’]: a história oficial, mentirosa, e a história secreta, onde estão as verdadeiras causas dos acontecimentos, uma história vergonhosa.” Mais uma pérola atirada aos porcos (nós, leitores): “Atualmente, o sucesso é a razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas [Escrito em 1838!.] Os grandes homens cometem tantas covardias quanto os miseráveis, mas eles as cometem na sombra e ostentam apenas as virtudes. Os pequenos exercem as virtudes na sombra, e expõem suas misérias à luz do dia: são então desprezados”. CÓDIGO CIVIL “Os inimigos da ordem social aproveitam-se para enviar às galés um ladrão de galinhas, enquanto aprisionam por alguns meses apenas um homem que arruína diversas famílias abrindo falência fraudulenta. (...) Ao condenar o ladrão, os juízes mantêm a barreira entre pobres e ricos, pois se essa barreira fosse derrubada seria o fim da ordem social. Ao passo que o caloteiro, o hábil captador de heranças ou o banqueiro que arruína um negócio em seu proveito, não produzem senão deslocamentos de fortuna. Tal é a religião de sua Constituição, que nada mais considera na política senão a propriedade”. Se nossos legisladores, do juiz que primeiro julgou Afanásio até Luiz Fux, do STF, tivessem lido Balzac e não apenas os códigos obrigatórios de sua profissão, muito teriam aprendido. E não aprenderiam só a escrever bem, mas também a legislar melhor. CÓDIGO ILEGAL Continua Balzac, pela voz do jesuíta erudito, doutrinando o jovem Lucien: “O senhor nada tem, encontra-se na mesma situação dos Médici, de Richelieu, de Napoleão no início de suas ambições. Essas pessoas, minha criança, avaliaram seu futuro ao preço da ingratidão, da traição e das mais violentas contradições. É preciso tudo ousar para tudo ter”. Ele também cita o romano Júlio César, mas não encontrei a passagem. Um sociólogo importante, Thorstein Veblen, escreveu no final do século XIX em sua “Teoria da Classe Ociosa”: “Em qualquer fase cultural conhecida, os dons de bondade, equidade e compaixão não favorecem de modo apreciável a vida do indivíduo. Pode-se dizer que a carência de escrúpulos, de piedade, de honestidade e de apego à vida contribui para aumentar o êxito do indivíduo na cultura pecuniária. [Hoje escreveria: no capitalismo.] Os homens que tiveram maior êxito em todas as épocas têm sido desse tipo”. ESPERNEAR É PRECISO Veja você. Citei apenas textos velhos, velhíssimos. Uma das vantagens da velhice, se existe alguma, é acumular conhecimentos antigos e poder passear pela história com olhos limpos. Não apenas a história escrita, mas a história vivida. A constatação primária é de que nada muda, senão muito lentamente, sendo preciso muita porrada para avançar um centímetro social, um milímetro legal. A natureza não tem nada com isso, exceto a culpa de ter criado o mais predador de todos os animais. Como nada tenho de melhor a fazer, continuarei esperneando.